Muitos desprezam a Teologia e a relegam a segundo plano, como se esta fosse uma ferramenta puramente humana e responsável por afastar o homem de Deus, tornando-o frio e insensível. Na verdade, é justamente o oposto que a Teologia faz. A Teologia estudada e aplicada da forma correta aproximará o homem de Deus da forma adequada, com a atitude certa e produzirá um coração devotado e fiel ao SENHOR, segundo os princípios que Ele mesmo estabeleceu em Sua Palavra.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Uma Percepção Sobre a Literatura de Espiritualidade Publicada no Brasil

Um leitor do blog fez uma consulta acerca da literatura sobre espiritualidade cristã, que se tornou bem popular entre os evangélicos brasileiros. Preciso dizer, antes, que o esboço deste texto foi escrito originalmente em 2007 para responder a uma consulta de amigos e reflete minha posição pessoal sobre este segmento da literatura publicada no Brasil: falta de boa exegese das Escrituras. O uso que se faz dos textos bíblicos é na forma de textos-prova (dicta probantia), isso quando não flerta com modelos interpretativos liberais – fraqueza refletida na recém-lançada Bíblia de Formação Espiritual Renovare, onde os comentaristas demonstram pouco interesse em exegese histórico-gramatical. Curiosamente, a versão original traz os textos apócrifos/deuterocanônicos: 1 e 2Esdras, Judite, 1, 2, 3 e 4 Macabeus, Salmo 151, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque, Tobias, etc., acompanhados de comentários. Como veremos, esta literatura promove uma noção errônea e perigosa de que a unidade por meio da experiência espiritual está acima da unidade confessional.

Comecemos – do que li de Eugene Peterson e James Houston comento mais detalhadamente abaixo. De Dallas Willard, membro da Convenção Batista do Sul (dos EUA), li o Conspiração Divina – e não me prendeu minha atenção. Uma curiosidade é que ele afirma o teísmo aberto numa passagem particularmente infeliz sobre oração nesta obra. Também li alguma coisa do quacker Richard Foster, mas não gostei. Aliás, de acordo com John Sanders, este autor do imensamente popular Celebração da disciplina, e fundador da Renovare, também está associado com o teísmo aberto, conhecido aqui no Brasil como teologia relacional, a infame tentativa de reinterpretar a divindade reduzindo-a a um ser preso ao tempo e história e limitado em conhecimento – tão menor e completamente diferente do Senhor Deus Todo-Poderoso, criador e sustentador de todas as coisas, como revelado nas Escrituras.

De Henri Nouwen peguei alguma coisa para ler (um deles foi Transforma meu pranto em dança), mas não me atraiu. Já Philip Yancey achei pretensioso demais. Não consegui passar de uma leitura inspecional de alguns de seus livros: Decepcionado com Deus, O Jesus que nunca conheci, Maravilhosa graça, Alma sobrevivente e A Bíblia que Jesus lia. Tentei ler analiticamente cada um destes, mas não consegui. Brennan Manning também (O evangelho maltrapilho). Achei-o muito cansativo. Tentei lê-lo somente porque várias pessoas na igreja onde servia na época em que foi lançado em português comentavam sobre ele. Aliás, sobre Yancey e Manning recomendo a leitura das postagens de Norma Braga, Philip Yancey entre muros e Julgar e discernir. Um detalhe curioso é que, até onde sei, as editoras evangélicas que publicam Nouwen e Manning no Brasil não os identificam como sacerdotes católicos romanos.

Li a série do Peterson sobre teologia pastoral e gostei bastante. Alguns dos títulos foram alterados em português. O que mais apreciei foi O pastor que Deus usa (Five Smooth Stones for Pastoral Work); é uma investigação do ministério pastoral em cinco livros bíblicos: Cantares, Rute, Lamentações, Eclesiastes e Ester. Pastores segundo o coração de Deus (Working the angles) e Pastor contemplativo, também são muito bons, assim como À sombra da planta imprevisível (relançado como A vocação espiritual do pastor). O alvo de Peterson não é exegético; o que ele oferece é uma compreensão teológica do ministério pastoral. O livro escrito com Marva Dawn, O Pastor desnecessário, é desigual, mas bom.

Outros livros dele que li, mas não gostei, foram Corra com os cavalos (relançado como Ânimo!), a primeira edição do Coma esse livro – que foi lançada em português faltando vários capítulos (e relançado completo como Maravilhosa Bíblia) – e os dois livros dele sobre os Salmos; esses que procuram ser mais expositivos não fogem do lugar-comum. Outro bom livro dele é o Transpondo muralhas – um estudo biográfico devocional sobre o Rei Davi, talvez o que mais gostei. Quem deseja ler comentários devocionais dos Salmos não precisa se limitar a Peterson: há boas obras, sólidas, que combinam boa profundidade exegética do texto com aplicações devocionais ricas. O pequeno livrinho de Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, é um exemplo disso, de dizer muito em poucas palavras, com precisão e riqueza devocional, trazendo percepções surpreendentes dos Salmos, interpretados cristologicamente.

Alguns problemas que identifico em Peterson: a aceitação do método histórico-crítico, que fica evidente na opção por uma datação tardia de alguns dos livros bíblicos, com consequências na aplicação do texto. E certa dependência de temas bartianos – em Take and read, uma lista anotada dos livros que Peterson julga mais importantes para a formação espiritual, ele claramente paga seu débito com Karl Barth, cuja leitura do comentário aos Romanos foi uma das mais importantes que fez (e sim, Der Römerbrief é uma obra impressionante, talvez o livro mais importante da teologia contemporânea européia, ainda que a edição brasileira desta obra seja sofrível, especialmente pelos comentários do tradutor acrescentados ao texto, que são inúteis e atrapalham a fluência da leitura). Um detalhe pouco divulgado é que Peterson é ministro ordenado da PCUSA, denominação presbiteriana com forte influência liberal, e que tem redefinido doutrinas cristãs fundamentais (como a da trindade) e se caracterizado por legitimar, com o uso de novas hermenêuticas, o homossexualismo e o aborto. Logo tratarei de outro problema mais sério em sua obra.

Em minha percepção, falta centralidade de Cristo bíblica e teológica na espiritualidade proposta por vários destes autores. Há muita ênfase em imitar o Cristo-Homem, estar aberto para Deus, no seguimento, na resposta humana, na crítica à espiritualidade verbal tradicional como se esta estivesse em oposição à espiritualidade estática ou mística, etc. Mas não há ênfase na cruz, na morte substitutiva e penal de Cristo, em seu sofrimento vicário. Em outras palavras, o que se tem na obra destes autores é o que Martinho Lutero chamou no Debate em Heidelberg (1519) de teologia da glória. Ou, colocando de outra forma: muita ênfase sobre o subjetivo, sobre a resposta do ser humano, sobre a nossa ascensão na escada para a glória, por meio ou de moralidade (mortificação, flagelação da carne, etc.), ou de misticismo (purgação, mortificação e iluminação) ou de especulação, mas pouca ênfase no que é objetivo, no que Deus fez e faz, na criação e na cruz, e na tumba vazia. Como bem percebeu Lutero, o que se prioriza nessas três escadas é a união da alma de forma imediata com Deus, sem a mediação de Cristo crucificado.Mas, para Lutero, o fiel somente encontra Deus não nas manifestações de poder que supostamente acompanham as três escadas, mas em fraqueza, na cruz, pois somente por meio da morte de Cristo somos justificados. Por isso, como Augustus Nicodemus destacou, alguns dos que promovem essas obras no Brasil são ministros e teólogos liberais, que não veem problema em se posicionar, por exemplo, como admiradores dos escritos de Paul Tillich ou seguidores do teísmo aberto, unindo estas idéias ao Pseudo-Dionísio e a Meister Eckhardt, ao mesmo tempo em que buscam uma vida de meditação e contemplação, aparentemente cristã, mas mais próximas do gnosticismo e do panenteísmo.

Outro ponto importante, que Norma Braga ressaltou numa conversa, é que esses autores, clamando um cansaço diante do racionalismo iluminista e do aparente dualismo entre o “aspecto de narrativa, de estória (story, história de vida, experiência pessoal)” e “o de argumentação e sistematização teórica”, optam pelo primeiro, tendo em comum o “manter a pluralidade da vida rejeitando toda sistematização racional, em comum acordo com a ‘tolerância’ moderna que quer se passar por ‘amor’ em nossos dias”. Desprezam assim a teoria para priorizar a diversidade dos fatos da vida, a experiência. Nesse sentido, Peterson, em Maravilhosa Bíblia, no capítulo sobre a proeminência da narrativa pessoal sobre a sistematização teórica, termina elogiando uma comunidade de judeus não-convertidos como exemplo de boa leitura bíblica. Após apontar erros na igreja tradicional evangélica, culpando-a por ater-se a certos modos de pensamento e interpretação “racionalistas”, louva como exemplar (em termos de leitura bíblica) uma comunidade que sequer crê em Cristo Jesus como único Salvador e Messias.

Sobre James Houston: oriundo dos Irmãos de Plymouth (no Brasil, Casa de Oração), Houston disse em certa ocasião aqui no Brasil que é um “calviniano”, não um calvinista. Em outras palavras, ele supostamente segue a teologia de João Calvino, não o calvinismo pós-reforma, a antiga idéia de descontinuidade na tradição reformada, oriunda de Karl Barth e T. F. Torrance e popularizada por R. T. Kendall. Parece que quando ele falou na Universidade Presbiteriana Mackenzie no fim da década de 1990, Houston defendeu esta posição. De todos esses citados, é o que mais aprecio. Li quase todos os livros dele publicados em português (que estão sendo relançados com boa tradução pela editora Palavra), e tive oportunidade de escutar muitas de suas palestras gravadas em fitas K7 – quando estas existiam! O conhecimento que ele tem da história da espiritualidade cristã é simplesmente invejável – ele passeia com desenvoltura por Agostinho, Bernardo, Lutero, Calvino, Bunyan, John Owen, Edwards, Hans Urs von Balthasar, Barth. Os livros são bem escritos e as idéias e conceitos são construídos criativamente. Como já sei o que vou encontrar e o que não vou encontrar, leio-o com prazer.

Em suma, como o Houston mesmo já afirmou numa gravação em um encontro de espiritualidade realizado no interior do estado de São Paulo, ele não tem interesse em fazer exegese. O alvo é fazer uma leitura espiritual do texto bíblico, a lectio divina, uma aplicação imediata do texto bíblico à vida de quem lê. Isso envolve uma série de riscos, especialmente por parte dos que tentam segui-lo, de, enfim, cair no antigo devocionalismo medieval, que se abria para o místico, sem muito interesse no ensino orientado pela exegese e na teologia. Ora, a abordagem do texto bíblico pautada pela exegese e pela teologia é justamente o tipo de espiritualidade que os reformadores, seguindo a devotio moderna de Thomas à Kempis, redescobriram e que Houston propõe, ao enfatizar a necessidade de manter juntos a sapientia e scientia. É necessário destacar que Houston talvez seja o principal responsável pela redescoberta da espiritualidade cristã entre os evangélicos na segunda metade do século XX.

Tristemente, vários destes escritores de espiritualidade e especialmente seus seguidores terminam por promover a teologia da glória: a suposição arrogante de que se pode chegar a Deus pelo próprio esforço ou obras, por meio da tentativa de construir escadas para o céu (Gn 11.1-9; cf 28.1-22); como conseqüência, o que se tem é uma mística destituída de conteúdo e da cruz. E tudo isso tentando afirmar a graça – que é apresentada, algumas vezes, em oposição à soberania e onipotência divina, logo, deixando de ser graça, pois esta, para ser graça, deve ser soberana e livre (cf. Rm 11.5-6). O triste é que o subjetivismo evidenciado nos muitos testemunhos (como em Maravilhosa graça, de Yancey) acaba por subverter a graça, tornando-a aquilo que o mártir Bonhoeffer chamou de graça barata, no clássico Discipulado. Há uma ou outra dificuldade em Houston e Peterson, mas, por terem sido formados ou servido em ambientes que priorizam sólida formação bíblica e teológica, e em interação com gente do calibre de C. S. Lewis e J. I. Packer, não caíram no mesmo erro. Infelizmente não vejo o mesmo em muitos de seus seguidores aqui no Brasil, muitos deles avessos à confessionalidade. São críticos severos e injustos da igreja, ao mesmo tempo em que reintroduzem o gnosticismo e o maniqueísmo, misturados ao marxismo, pela porta dos fundos da comunidade cristã, muitas vezes num discurso que se pretende atual, mas em ruptura com a tradição evangélica. Ainda que propondo uma espiritualidade mística, supostamente cristã, esta se encontra destituída de conteúdo cristocêntrico objetivo: a cruz, a expiação e a morte vicária, o momentum e o centro da fé cristã histórica. No fim, precisamos perguntar: qual é o alvo da experiência mística? Se não é ser unidos misticamente com Cristo, morto e ressurreto, por meio da Palavra e dos sacramentos, se não é termos em nós as marcas de nosso Salvador, então já deixou de ser espiritualidade cristã.

A busca ávida por livros de espiritualidade parece ser determinada por uma visão mecanicista; as pessoas parecem procurar uma fórmula de espiritualidade que funcione – uma compreensão da devoção totalmente oposta à perspectiva bíblica da espiritualidade, que é determinada não por um modelo único, normativo, mas pela perspectiva da peregrinação pessoal diante do Deus pessoal e infinito, que elege e firma aliança com pessoas. Para um desenvolvimento deste parágrafo, indico o ensaio introdutório “Um guia para a formação espiritual”, presente em Gigantes da fé (publicado por Vida), p. 13-21, onde ofereço um esboço de uma teologia da espiritualidade cristã. Recomendo especialmente o livro de Alister McGrath, Uma introdução à espiritualidade cristã (publicado por Vida), que traça descritivamente um amplo mosaico da devoção cristã.

Um livro que é obrigatório sobre o tema é A face de Deus (Cultura Cristã), do Michael Horton. Oferece a estrutura básica para a análise dessa literatura de espiritualidade e da hinódia cristã contemporânea. Aliás, quando Horton pregou na Conferência da Fiel, em 1998, em conversa pessoal, também afirmou que o Houston era um proponente da teologia da glória. Ainda que surpreendente, esta crítica de Horton precisa ser ponderada.

Ajudará a marcar a diferença entre a espiritualidade agostiniana e reformada e essas novas espiritualidades a leitura do texto introdutório de Stephen Yuille, “Meditação puritana: o portão da mente para o coração”.

Para terminar, precisamos urgentemente da publicação de boa literatura nesta área, como por exemplo, os clássicos lançados por PES, de Lewis Bayly, A prática da piedade (c. 1611), e Henry Scougal, A vida de Deus na alma do homem (1739). Uma literatura que seja bíblica, exegética e teologicamente orientada, que nos ajude a redescobrir a Cristo Jesus nas Escrituras e nos sacramentos, por meio do quebrantamento, do arrependimento, do jejum e de uma rica vida comunitária, e que priorize a busca por avivamento como dádiva do Espírito Santo – como os puritanos na Inglaterra, na Escócia, na Holanda e nos Estados Unidos buscavam.

Autor: Franklin Ferreira
Fonte: blogfiel.com.br
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